FERNANDO DE BARROS E SILVA
COLUNISTA DA FOLHA
COLUNISTA DA FOLHA
Trama do SBT empastela história ao misturar narrativa do golpe de 64 com rotina dos porões da tortura em 68.
Tiago Santiago quis me apresentar à obra de Elio Gaspari. Foi um pouco afobado. Citou um trecho do primeiro dos seus quatro livros sobre o regime militar ("A Ditadura Envergonhada") atribuindo-o ao terceiro volume ("A Ditadura Derrotada").
O objetivo do autor de "Amor e Revolução", do SBT, era contestar a crítica que fiz à novela, especificamente a seus problemas históricos.
O início de "Amor e Revolução" se passa no dia do golpe militar, 31 de março de 1964. Como seu autor, que pretende ser fiel à história, justifica os guerrilheiros que enfiou no enredo, dando tiros, planejando a revolução e morrendo, tudo naquele dia?
Simples. Santiago recorre ao livro de Gaspari para nos lembrar que "no início de 1962, uma nova organização esquerdista", chamada Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT), "recebera a bênção cubana" e "planejava a montagem de um dispositivo militar" no país.
Mas omite de sua citação o trecho imediatamente seguinte do livro: "Tratava-se uma guerrilha mambembe (juntava menos de 50 homens)". O MRT evaporou do mapa antes de 1963.
A guerrilha que inspira Santiago não é, obviamente, essa de 1962, que nem houve, mas a que tomou corpo nos anos seguintes ao golpe e foi dizimada depois do AI-5, sobretudo entre 1969 e 1973.
A novela do SBT empastela a história ao embaralhar a narrativa do golpe em 64 com a rotina dos porões da ditadura no pós-68. Será por acaso que os depoimentos reais ao final de cada capítulo sejam feitos por pessoas torturadas depois do AI-5?
Isso não quer dizer, é óbvio, que não se torturou antes disso. Lembre-se o caso de Gregório Bezerra, comunista histórico, arrastado pelas ruas do Recife amarrado a um jipe em 2 de abril de 64.
Segundo Gaspari, em "A Ditadura Escancarada", "entre 1964 e 1968 foram 308 as denúncias de torturas apresentadas por presos políticos às cortes militares. Durante o ano de 1969 elas somaram 1.027 e em 1970, 1.206 (...). Em apenas cinco meses, de setembro de 69 a janeiro de 70, foram estourados 66 aparelhos, encarceradas 320 pessoas e apreendidas mais de 300 armas" (pág.160).
Depois de 68, a tortura foi "transformada em política de Estado" ("A Ditadura Escancarada", pág. 18), o que deu outra dimensão ao problema. Não obstante isso, o monstro foi gestado e, na prática, tolerado desde o governo Castello Branco, como bem mostra Elio Gaspari.
As restrições históricas que fiz à novela são quase acessórias diante do seu desastre dramatúrgico. Os diálogos escolares e impostados, o contorno involuntariamente cômico dos personagens, o "realismo mexicano" de "Amor e Revolução" é o que primeiro incomoda nessa reconstituição de época. Ela lembra, como disse o crítico Eugênio Bucci, aqueles quadros do "Casseta & Planeta" caçoando das novelas.
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